domingo, 19 de dezembro de 2021

UMA GRANDE ESPERANÇA


A afirmação de que Jesus também é Deus nos dá a maior esperança possível. Isso significa que nosso mundo não é tudo que existe, que há vida e amor após a morte e que o mal e o sofrimento um dia acabarão. E quer dizer não só esperança para o mundo, apesar de todos os seus problemas intermináveis, mas esperança para você e eu, apesar de todos os nossos fracassos intermináveis.  Um Deus que fosse apenas santo não desceria até nós em Jesus Cristo. Exigiria apenas que nos controlássemos, que fôssemos moralmente corretos e santos o suficiente para merecer um relacionamento com ele. A divindade que fosse um “Deus de amor que aceita tudo” tampouco necessitaria vir à terra. Esse Deus da imaginação
moderna não só ignoraria o pecado e o mal como nos receberia. Nem o Deus do
moralismo nem o Deus do relativismo teriam se dado ao trabalho do Natal.
O Deus bíblico, contudo, é infinito em santidade. Por isso nosso pecado não
podia ser descartado como algo sem importância. Era necessário tratar o
problema. Ele também é infinitamente amoroso. Sabe que jamais
conseguiríamos subir até ele, por isso desceu até nós. Deus tinha de vir ele
mesmo e fazer o que nós não podíamos. Ele não envia ninguém; não manda o
relatório de uma comissão ou de um pregador para lhe dizer como se salvar. Ele vem pessoalmente nos buscar.
Natal, portanto, significa que para você e para mim há toda a esperança do mundo.

Tim Keller (O natal escondido)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Romanos 14:5 e o Shabbath Semanal


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A questão é se o Shabbath (descanso)[1] semanal enquadra-se no escopo da distinção atinente a dias, que o apóstolo aborda em Romanos 14:5. Caso isto seja verdade, precisamos levar em conta as seguintes implicações: 

(1) Isto significaria que o mandamento relativo ao Shabbath, no Decálogo, não continua a impor qualquer obrigação de obediência aos crentes, na economia do Novo Testamento. A observância de um dia em cada sete, reputando-o santo e investido da santidade enunciada no Quarto Mandamento, teria sido ab-rogada e encontrar-se-ia na mesma categoria da observância dos ritos cerimoniais da instituição mosaica. Com base nesta suposição, a insistência sobre a santidade permanente de cada sétimo dia seria algo tão judaizante quanto a existência de que se perpetuem as festas levíticas.

(2) O primeiro dia da semana não teria nenhuma significação religiosa. Não seria distinguido de qualquer outro dia como memorial da ressurreição de Cristo; tampouco poderia ser devidamente considerado como dia do Senhor, em distinção ao modo que cada dia tem de ser vivido em devoção e serviço ao Senhor Jesus Cristo. Nem poderia qualquer outro dia, semana ou período ser considerado com essa significação religiosa.

(3) A observância de um Shabbath semanal ou de um dia que comemora a ressurreição de nosso Senhor seria característica de uma pessoa fraca na fé; e, neste caso, ela estaria nesta situação por não haver atingido aquele entendimento de que, na instituição cristã, todos os dias possuem o mesmo caráter. Assim como um crente fraco deixa de reconhecer que todos os tipos de alimentos são puros, assim também outro crente, ou talvez o mesmo, não reputaria todos os dias como iguais.

Estas implicações da tese que estamos abordando são inevitáveis.

Podemos agora examiná-las à luz das considerações que todas as Escrituras nos fornecem.

(1) A instituição do Shabbath é uma ordenança vinda desde a criação. Não começou a vigorar no Sinai, quando os Dez Mandamentos foram dados a Moisés (cf. Gn. 2:2-3; Ex. 16:21-23). No entanto, o Shabbath foi incorporado à lei promulgada no Sinai, e isto deveríamos esperar, em face de sua significação e propósito, enunciados em Gênesis 2:2-3. E o Shabbath está tão embebido nesta lei da aliança, que considerá-lo dotado de caráter diferente do seu contexto, no tocante à sua relevância de caráter diferente do seu contexto, no tocante à sua relevância permanente, milita contra a unidade e a significação básica do que foi inscrito nas tábuas da lei. Nosso Senhor falou-nos do propósito deste mandamento e reivindicou-o para o seu senhorio como Messias (Mc. 2:28).

A tese que estamos considerando teria de admitir que o padrão fornecido por Deus mesmo (Gn. 2:2-3), em sua obra de criação (cf. também Ex. 20:11; 31:17), não tem mais qualquer relevância para regulamentar a vida do homem na terra; precisaria reconhecer que somente nove dentre os Dez Mandamentos possuem autoridade para os cristãos; haveria de aceitar que o desígnio beneficente contemplado na instituição original (Mc. 2:28) não tem aplicação sob a economia do evangelho e que o senhorio de Cristo, exercido sobre o sábado,[2] teve o propósito de aboli-lo como uma instituição a ser observada. Estas são as conclusões que necessariamente extraímos da tese em questão. Não há nenhuma evidência inspirando qualquer destas conclusões; e, quando combinamos e avaliamos francamente a força cumulativa destas conclusões, verificamos que esta tese põe em contradição toda a analogia das Escrituras.

(2) O primeiro dia da semana, visto ter sido o dia em que o Senhor Jesus ressurgiu dentre os mortos (cf. Mt. 28:1; Mc. 16:2, 9; Lc. 24:1; Jo. 21:1, 19), foi reconhecido no Novo Testamento como o dia que possui uma significação especial derivada do fato da ressurreição de Jesus (cf. At. 20:7; 1Co. 16:2); esta é a razão pela qual João o chamou “dia do Senhor” (Ap. 1:10). 

Este é o dia da semana ao qual pertence esse distintivo significado espiritual. E, posto que ele ocorre a cada sete dias, trata-se de um memorial de repetição perpétua, com intuito e caráter religioso proporcional ao lugar ocupado pela ressurreição de Jesus na obra da redenção. Os dois acontecimentos centrais nesta obra são a morte e a ressurreição de Cristo; e as duas ordenanças memoriais instituídas no Novo Testamento são a Ceia e o dia do Senhor; a primeira comemora a morte de Jesus e, a outra, a sua ressurreição. Se Paulo, em Romanos 14:5, deixou subentendido que todas as distinções entre dias haviam sido canceladas, não existe lugar para a distintiva significação do primeiro dia da semana como dia do Senhor. As evidências em apoio ao caráter memorial do primeiro dia da semana não devem ser controvertidas; e, em conseqüência disso, também não podemos entreter a tese de que todas as distinções religiosas entre dias foram totalmente ab-rogadas na economia cristã.

(3) Em harmonia com a analogia das Escrituras, e, particularmente, com o ensino de Paulo, Romanos 14:5 pode ser devidamente considerado como alusivo aos dias santos e cerimoniais da instituição levítica. O dever de observar esses dias é claramente revogado no Novo Testamento. Não possuem mais relevância nem sanção, e a circunstância descrita em Romanos 14:5 concorda perfeitamente com o que Paulo diria a respeito dos escrúpulos religiosos ou da ausência de tais escrúpulos acerca desses dias. Paulo não se mostrou insistente sobre o fato de que não mais há necessidade de serem observados os ritos das ordenanças levíticas, visto que tais observâncias eram apenas um costume religioso e não comprometeriam o evangelho (cf. At. 18:18, 21; 21:20-27). Ele mesmo ordenou que Timóteo fosse circuncidado, devido a considerações de expediência. No entanto, em uma situação diferente, ele pôde escrever: “Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará” (Gl. 5:2).

Os dias de festas cerimoniais se enquadram na categoria a respeito da qual o apóstolo disse: “Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias”. Muitos judeus ainda não haviam compreendido todas as implicações do evangelho e ainda possuíam escrúpulos no tocante a essas ordenanças mosaicas. Sabemos que Paulo se mostrou completamente tolerante com tais escrúpulos; e estes se adaptam aos termos exatos do texto em questão. Não há necessidade de admitirmos coisa alguma que vá além dessas observâncias. Colocar o dia do Senhor (o Shabbath, ou descanso semanal) em uma mesma categoria não somente ultrapassa os requisitos exegéticos, como também nos põe em conflito com os princípios inseridos em todo o testemunho das Escrituras. Uma interpretação que envolve tal contradição jamais poderá ser adotada. Por conseguinte, não podemos afirmar que Romanos 14:5, de qualquer maneira, anula a santidade permanente de cada sétimo dia, como memorial do descanso de Deus, na Criação, e memorial da exaltação de Cristo, em sua ressurreição. 

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Notas do tradutor:

[1] Shabbath (hebraico) significa “descanso do labor”. Essa é a palavra que é traduzida como sábado em no Antigo Testamento (por exemplo, Ex. 16:23, 25, 26, 29; Ex. 20:8, 10, 11; Ex. 31:14-16, etc.). 
[2] Em Mateus 12:8, onde Cristo diz, “Porque o Filho do Homem é senhor do sábado”, o termo grego para sábado é sabbaton, de origem hebraica (shabbath).
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Autor: John Murray
Fonte: Romanos, John Murray, Editora Fiel, p. 671-3
 
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Sobre os “Cristãos Progressistas”



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Os assim chamados “cristãos progressistas” (alcunha que não é nova, e foi usada, por exemplo, na Polônia, nas décadas de 1950 e 1960 para caracterizar os católicos que apoiaram os comunistas) se notabilizam, hoje, no Brasil, por defender a união civil de pessoas do mesmo sexo, aborto, maioridade penal e todo tipo de estatismo, como bons devotos de uma ordem religiosa, totalmente leais ao Partido e ao santo graal da Ideia.¹ Todos aqueles que não concordam com eles são tratados, simplesmente, como “não-pessoas”. E alguns de seus autores prediletos são Jürgen Moltmann, Hans Küng, Paul Tillich, Rob Bell, Brian McLaren, John Howard Yoder, Rosemary Radford Ruether, Leonardo Boff, Frei Betto, Gustavo Gutiérrez, Severino Croatto, entre outros.

Mas a defesa veemente desses temas são sinais de um mal maior. Até que ponto esses “cristãos progressistas” não têm reinterpretado profundamente a fé cristã, tornando-a em algo amorfo, totalmente distinto daquilo que se pode receber como revelação de Deus nas Escrituras Sagradas?

Parece que há, da parte desses “cristãos progressistas”, uma clara ruptura com “aquilo que foi crido em todo lugar, em todo tempo e por todos [os fiéis]” (Vicente de Lérins); isto é, esses “cristãos progressistas” se caracterizam não só por um afastamento, mas por uma rejeição de todo o ensino consensual entre os cristãos legítimos: a crença no Deus uno e trino, em sua revelação infalível e autoritativa nas Escrituras Sagradas, no pecado original e pessoal, na salvação exclusiva pela livre graça, no nascimento virginal de Cristo Jesus, em seu sacrifício sangrento na cruz, expiatório e substitutivo, em sua ressurreição corporal e em sua segunda vinda, única, visível e pessoal.

Se há, de fato, tal cisão, como reconhecer esses ditos “progressistas” como cristãos? Até que ponto – mais uma vez, se há um afastamento do ensino consensual cristão, como resumido nos antigos credos, aceitos por todos os ramos da fé cristã – não se deve considerá-los como meros “cavalos de Tróia”? Pois estes têm por alvo subverter os alicerces mais básicos da fé e da ética cristã para que a Igreja seja controlada (Gleichschaltung), subordinando-a à agenda do Partido/Estado, inflexível e colossal.

E, me parece, com a derrocada da esquerda na esfera pública, esses “cristãos progressistas” dobraram a aposta, na esfera eclesial, propagandeando com mais virulência, militantemente, suas crenças e valores.

Ao fim, toda noção de cristianismo parece ter sido subvertida pelos “cristãos progressistas”, subordinados que estão a uma Ideia. Se isso é assim, estes não podem ser reconhecidos como cristãos. Pois eles colocam fé na Ideia, não na Revelação. E gnosticismo não é cristianismo.
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Nota:
[1] O termo “cristão progressista” também foi usado no Brasil nas décadas de 1950 e 1960 para caracterizar os adeptos da teologia da libertação, que “pensavam à frente”, contrapondo-se aos “reacionários”, que, por serem conservadores, estariam “amarrando o progresso”. E, na época, era hegemônico equacionar “progresso” com a noção comunista de história. Os “cristãos progressistas” surgiram nesse momento, supondo que a classe que salvaria o mundo seriam os pobres. Com a derrocada do socialismo no leste europeu, seguindo a nova esquerda, os “cristãos progressistas” entendem que a classe que salvará o mundo será a dos “excluídos” e minorias: mulheres, negros, homossexuais, índios, etc. Agora, enquanto o esquerdismo do PT sai de moda no Brasil e no restante da América Latina, alguns, atrasados em seis décadas, defendem e propagam o “cristianismo progressista”, na contramão da história.
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Autor: Franklin Ferreira
Divulgação: Bereianos

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A natureza humana é totalmente depravada



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O homem, porém, não se pode melhor conhecer, em uma e outra parte da alma, a não ser que se ponha à vista com seus títulos, pelos quais é caracterizado pela Escritura. Se todos forem descritos com estas palavras de Cristo: “O que é nascido da carne é carne” [Jo 3.6], como é fácil comprovar, o homem é convencido de ser uma criatura mui miserável. Ora, o Apóstolo atesta que a inclinação da carne é morte, uma vez que é inimizade contra Deus, e por isso não se sujeita à lei de Deus, nem pode sujeitar-se [Rm 8.6, 7].

Porventura a carne está a tal ponto pervertida, que com toda sua inclinação exerça inimizade contra Deus, que não possa conformar-se à justiça da lei divina, que nada, afinal, possa exibir senão ocasião de morte? Pressupõe-se, então, que nada há na natureza humana senão carne, e que daí não se pode extrair algo de bom. Mas dirás que o termo carne se refere apenas à parte sensória, não à parte superior da alma. Isto, porém, se refuta plenamente à luz das palavras não só de Cristo, como também do Apóstolo. O postulado do Senhor é: ao homem importa nascer de novo [Jo 3.3], porque ele é carne [Jo 3.6]. Não está preceituando nascer de novo em relação ao corpo. Mas, na alma nada nasce de novo, se apenas alguma porção lhe for reformada; ao contrário, toda ela se renova. E isto é confirmado pela antítese estabelecida em uma e outra destas duas passagens, pois de tal modo o Espírito é contrastado com carne, que nada é deixado entre ambos. Logo, tudo que no homem não é espiritual, segundo este arrazoado, diz-se ser carnal. Nada, porém, temos do Espírito senão pela regeneração. Portanto, tudo quanto temos da natureza é carne.

Na verdade, tanto quanto em outras circunstâncias, se pudesse haver dúvida acerca desta matéria, a mesma nos é dirimida por Paulo, onde, descrito o velho homem, que dissera ter sido corrompido pelas concupiscências do erro, ordena que sejamos renovados no espírito de nossa mente [Ef 4.22, 23]. Vês que ele não situa os desejos ilícitos e depravados apenas na parte sensorial, mas também na própria mente, e por isso requer que lhe haja renovação. E de fato, pouco antes pintara esta imagem da natureza humana, que mostra que estamos corrompidos e depravados em todas as nossas faculdades.

Ora, ele escreve que todos os gentios andam na vaidade de sua mente, estão entenebrecidos no entendimento, alienados da vida de Deus por causa da ignorância que neles há, e da cegueira de seu coração [Ef 4.17, 18], não havendo a mínima dúvida de que isso se aplica a todos aqueles a quem o Senhor ainda não reformou para a retidão, seja de sua sabedoria, seja de sua justiça. O que se faz ainda mais claro da comparação adjunta logo em seguida, onde adverte aos fiéis de que não haviam assim aprendido a Cristo [Ef 4.20]. Seguramente concluímos destas palavras que a graça de Cristo é o único remédio pelo qual somos libertados dessa cegueira e dos males daí resultantes.

Ora, também assim havia Isaías vaticinado acerca do reino de Cristo, quando o Senhor prometia que haveria de ser por luz sempiterna à sua Igreja [Is 60.19], enquanto, a esse mesmo tempo, trevas cobririam a terra e escuridão cobriria os povos [Is 60.2]. Quando testifica haver de despontar na Igreja a luz de Deus, fora da Igreja certamente nada deixa, a não ser trevas e cegueira. 

Não mencionarei, uma a uma, as passagens que a respeito da vacuidade do homem se contam por toda parte, especialmente nos Salmos e nos Profetas. Incisivo é o que Davi escreve: “Certamente os homens de classe baixa são vaidade, e os homens de ordem elevada são mentira” [Sl 62.9]. Traspassado de pesado dardo lhe é o entendimento, quando todos os pensamentos que daí procedem são escarnecidos como estultos, frívolos, insanos, pervertidos.

A DEPRAVAÇÃO HUMANA É CONFIRMADA PELO QUE DIZ PAULO EM ROMANOS 3

Em nada é mais branda a condenação do coração, quando se diz ser enganoso acima de todas as coisas e depravado [Jr 17.9]. Mas, visto que estou tentando ser breve, contentar-me-ei com apenas uma passagem, a qual, no entanto, haverá de ser como um espelho caríssimo, em que contemplamos a imagem integral de nossa natureza. Ora, o Apóstolo, quando quer lançar por terra a arrogância do gênero humano, o faz com estes testemunhos [Rm 3.10-16, 18]: “Pois não há nenhum justo, não há quem tenha entendimento, ou que busque a Deus; todos se desviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, nem um sequer” [Sl 14.1-3; 53.1-3]; sepulcro aberto é a garganta deles; com suas línguas agem dolosamente” [Sl 5.9]; veneno de áspides há debaixo de seus lábios” [Sl 140.3]; “dos quais a boca está cheia de maldição e amargor” [Sl 10.7]; “cujos pés são velozes para derramar sangue; em cujas veredas há destruição e infortúnio” [Is 59.71]; “diante de cujos olhos não há temor de Deus” [Rm 3.18].

Com esses raios, o Apóstolo não está investindo apenas contra certos homens, mas contra toda a raça dos filhos de Adão. Nem está ele a censurar os costumes depravados de uma ou outra era, mas está acusando a perpétua corrupção de nossa natureza. Com efeito, nesta passagem, seu propósito não é simplesmente censurar os homens, para que caiam em si, mas, antes, ensinar que todos têm sido acossados de inelutável calamidade, da qual não podem sair, a não ser que sejam retirados pela misericórdia de Deus.

Visto que isso não podia ser provado, a não ser que fosse estabelecido da ruína e destruição de nossa natureza, trouxe ele à baila estes testemunhos, mediante os quais se convence de que nossa natureza está mais do que perdida. Portanto, fique isto demonstrado: os homens são tais quais aqui descritos, não apenas pelo vezo do costume depravado, mas ainda pela depravação de sua natureza. Porquanto não se pode de outra forma sustentar a argumentação do Apóstolo: não há para o homem nenhuma salvação, senão pela misericórdia do Senhor, porquanto, em si, ele está inexoravelmente perdido.

Não me darei aqui ao trabalho de provar a aplicabilidade desses testemunhos, para que não pareçam, aos olhos de alguém, indevidamente usados pelo Apóstolo.

Procederei exatamente como se essas coisas fossem originalmente ditas por Paulo, não tomadas dos profetas. Ele priva o homem, de início, da justiça, isto é, da integridade e da pureza; a seguir, do entendimento [Rm 3.10, 11]. Ora, a carência de entendimento é demonstrada pela apostasia para com Deus, a busca de quem é o primeiro degrau da sabedoria. Mas essa deficiência necessariamente se acha naqueles que se têm afastado de Deus. Acrescenta em seguida que todos se têm transviado e se têm tornado como que putrefatos, que nenhum há que faça o bem; então adiciona as ignomínias com as quais contaminam a cada um de seus membros aqueles que uma vez se espojaram na dissolução. Finalmente, atesta que são vazios do temor de Deus, o que deveria ser a regra a dirigir-nos os passos.

Se forem estes os dotes hereditários do gênero humano, em vão se busca algo de bom em nossa natureza. Reconheço, sem dúvida, que nem todas estas abominações vêm à tona em cada ser humano, entretanto não se pode negar que esta hidra jaz oculta no coração de cada um. Ora, como o corpo, quando já mantém incubada em si a causa e matéria de uma doença, se bem que ainda não efervesça a dor, por isso não se julgará ser sã nem mesmo a alma, enquanto borbulha em tais achaques de vícios, embora a comparação não se enquadre em todos os aspectos, porque, no corpo, por mais enfermo, subsiste um alento de vida; a alma, porém, imersa neste abismo fatal, não só padece desses achaques, mas ainda é inteiramente vazia de todo bem.

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Autor: João Calvino
Fonte: CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. Vol. 2, Cap. III, pág. 57-59. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
 
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“Malakoí” e o debate Neto x Feliciano

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Recentemente o empresário Felipe Neto e o Pastor/Deputado Marco Feliciano debateram sobre algumas questões de extrema relevância para a atualidade. O primeiro assunto debatido foi sobre o homossexualismo, que nas palavras de Felipe Neto, “é o assunto em pauta do século”.

Felipe Neto corretamente aponta a falta de uniformidade teológica no meio evangélico brasileiro, bem como a seletividade na aplicação de textos bíblicos por parte dos cristãos, demonstrando de forma eficaz contradições internas na teologia do Pr. Feliciano (p. ex. a questão das mulheres como pastoras).

No debate, foi aludido a 1Co. 6.9 como um texto que demonstra que relações do mesmo sexo são tratadas como pecado na Bíblia, ao que Felipe Neto, citando a palavra grega (e não hebraica!) “malakoí” (traduzida em algumas versões como “efeminados”) diz que o termo significa “devasso”, não se referindo explicitamente ao homossexualismo.

O propósito deste texto não é defender nenhum dos dois debatedores em questão, mas sim demonstrar que “malakoí” (em 1Co. 6.9) claramente se refere a prática homossexual. 

Malakoi” em 1Coríntios 6.9-10
Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus

No capítulo 6 dessa carta, Paulo critica o litígio no meio da igreja de Corinto. Nos versos em questão (9-10) Paulo fala sobre aqueles que não herdarão o reino de Deus (dentro da escatologia inaugurada de Paulo, reino de Deus nesse texto em específico se refere ao futuro e consumado reino vindouro de Deus). Paulo já havia feito um “catálogo” negativo com 6 elementos em 1Co. 5.9-11 (impuro, avarento, idólatra, maldizente, beberrão, roubador) adicionando agora mais 4, totalizando 10 (adúlteros, homossexuais passivos e ativos e ladrões).


Os termos devassos (impuros), idólatras, adúlteros, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores são claros e não precisam de um comentário aqui. O problema está nas duas palavras traduzidas tradicionalmente como “efeminados” (μαλακοὶ) e “sodomitas” (ἀρσενοκοῖται).

Μαλακός fora de um contexto sexual significa “leve” e é traduzido como “brando” (γλῶσσα δὲ μαλακὴ συντρίβει ὀστᾶ, Prov. 25.15 LXX), e também como “fino” (roupas finas em Mt. 11.8).

Na literatura helenística do período romano pode significar efeminado quando se referindo a homem (Dio Chrysostom, 49 [66]; Diogenes Laertius, 7: 173).

Em 1Co. 6.9, sua relação sintagmática com ἀρσενοκοῖται influencia sua extensão semântica. Este último é a forma mais antiga desse adjetivo composto, não tendo uma pré-história lexicográfica. Entretanto, os estudiosos estão em acordo que seus componentes significam “dormir com” ou “ter relações sexuais com” (κοῖτης) “homens” (ἄρσην – macho [substantivo]; ἀρσενικός – macho [adjetivo]). Ambos os termos receberam um intenso escrutínio lexicográfico, mas infelizmente nosso espaço aqui não nos permite tal mapeamento. 

Em geral, há um amplo consenso que  μαλακοί em 1Co. 6.9 significa “um parceiro passivo em uma relação homossexual entre homens”. Devemos considerar esses dois termos em relação um com o outro para não entrarmos num ambiente especulativo. Esses dois termos se referem ao relacionamento homossexual entre um parceiro mais passivo (μαλακοί) e um mais ativo (ἀρσενοκοῖται), sem fazer referência específica à pederastia (conforme Scroggs) nem a prostituição (conforme Boswell). Mesmo esses dois estudiosos acima que defendem traduções diferentes, concordam que ἀρσενοκοῖται significa “deitar na cama com outro homem”, expressão que ocorre em Levítico 18.22:
Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; é abominação”.

Scroggs afirma que “o hebraico é traduzido fielmente”, e que também “partes desse composto grego aparecem na versão Septuaginta das leis em Levíticos” e na discussão legal rabínica “deitar com um homem (mishkav zakur) é o termo mais usado para descrever a homossexualidade entre homens” (Scroggs, The New Testament and Homosexuality, 107, n. 10.).


Entretanto, como corretamente pontua Anthony Thiselton em seu magistral comentário de 1Coríntios, a questão não é se podemos traçar um link entre Lv. 18.22 e 1Co. 6.9, mas se a visão de Paulo sobre o Antigo Testamento se origina totalmente através de lentes de recontextualização judaico-helenística em termos de uma sociedade greco-romana, ou se ele interpreta o AT como Escritura cristã oferecendo paradigmas diretos para o estilo de vida e para a ética do povo de Deus como uma identidade corporativa (Thiselton, 2000; p.450; esta última opção é a mais coerente).

Outro ponto que ajuda a lançar luz sobre o texto, é a cuidadosa análise estrutural de 1Co. 6.9-20 feita por Kenneth Bailey. Ele argumenta que 6.9-20 constitui uma cuidadosa construção de 5 parágrafos em que (a) os 5 pecados sexuais listados se referem aos caps. 5 e 6.12-20 e (b) os outros 5 se referem a questões como comida e bebida (cf. 1Co. 11.17-34). A condenação de um tipo de pecado não tem prioridade sobre os outros. Todos dizem respeito ao corpo. Ainda sim, cada subcategoria dentro desses dois grupos possui sua importância (Bailey, “Paul’s Theological Foundation,” 27-29). Bailey argumenta que todas as falhas sexuais estão relacionadas à idolatria. Nas quatro que são expressas com ações, duas são direcionadas aos heterossexuais (adultério (para os casados) e relacionamentos ilícitos (para os solteiros?)), e duas para os homossexuais (um aplicando à função passiva e outro à ativa). Não podemos ter certeza da precisão dos argumentos de Bailey, mas certamente eles acrescentam um impressionante peso cumulativo aos demais argumentos que demonstram que o homossexualismo é visto explicitamente como pecado em 1Co. 6.9.

Algumas conclusões reflexivas sobre 1Co. 6 e o homossexualismo

1. Em um catálogo com dez disposições que alcançam ações habituais no domínio público, apenas duas se referem a relacionamentos do mesmo sexo, e esses não recebem nenhuma ênfase adicional em relação aos outros oito (Thiselton). Considerações são feitas sobre desejos ilícitos heterossexuais e de aumento de poder e posses da mesma forma que são feitas sobre os relacionamentos do mesmo sexo (não estou defendo uma visão igualitária do pecado, apenas demonstrando algo específico desse texto).

2. As declarações que dizem que as questões homossexuais não são questões tratadas pela Bíblia são no mínimo confusas. Ao contrário do que Felipe Neto disse, Romanos 1.18-32 se refere claramente a relacionamentos do mesmo sexo, bem como o texto brevemente analisado aqui. Jesus apela para Gênesis 1.27 (‘homem e mulher os criou’) e 2.24 (‘o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles serão uma só carne’), em suas observações sobre divórcio e recasamento em Marcos 10.6-9 e Mateus 19.4-6, mostrando a importância do pré-requisito de homem e mulher para o casamento, implicando assim, que não só a poligamia é algo ilícito, mas também o homossexualismo. 

3. Devido à distância entre os séculos I e XXI, alguém pode questionar se a questão Bíblica é comparável com a questão nos nossos dias. Quanto mais os estudiosos examinam a sociedade greco-romana e o pluralismo de suas tradições éticas, mais a situação em Corinto parece ressoar a nossa. Portanto são duas situações comparáveis, ainda mais para um cristão que crê que a Bíblia é a palavra de Deus e se aplica a todas as gerações. 

Paulo parece retornar ao AT como fonte de uma ética distinta para um povo distinto (os cristãos), interpretando à luz do evento-Cristo. A conexão entre 1Co. 6.9-10 e Rm. 1.26-29 e seu background veterotestamentário endossam que a idolatria, isto é, a pretensa autonomia humana construindo o valor de alguém acima de um compromisso pactual com Deus, leva a um colapso de valores morais em um tipo de efeito dominó (Thiselton).
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Autor: Willian Orlandi
Divulgação: Bereianos

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“Malakoí” e o debate Neto x Feliciano